Liberdade, Estado e vacinação
Como a questão da liberdade influencia na vacinação e quais instrumentos o Estado possui para auxiliá-lo?
No último dia 13 de agosto, sexta-feira, foi noticiado que o Brasil ultrapassou os Estados Unidos na marca percentual de adultos vacinados com a primeira dose no país[1]. Enquanto aqui se alcançou 71,7% de maiores de 18 anos com a aplicação da primeira dose realizada, no país da América do Norte esse percentual encontrava-se, no mesmo dia, em 71,6%.
Evidentemente, tal marca tem sua relevância, demonstrando, de imediato, que a campanha de vacinação tem conseguido avançar no Brasil, de modo que, em breve, o país contará com toda sua população adulta vacinada, ao menos pela primeira dose. Tal fato deve ser comemorado, pois a vacinação, somada às medidas de prevenção pessoal, são as únicas alternativas existentes para o combate ao novo coronavírus.
No entanto, na verdade, os números apresentados supra acabam por expressar mais sobre a realidade norte-americana do que a brasileira. No caso, a ultrapassagem concretizada pelo Brasil se deve ao sentimento anti-vacina existente no território norte-americano, que tem levado à estagnação da quantidade de pessoas imunizadas no país.
A título de exemplo, de 01 de julho a 15 de agosto, a população total dos Estados Unidos imunizada ao menos com a primeira dose subiu de 51,3% para 60,3%. No mesmo período, o Brasil saiu de 35,9% para 56,8%, crescimento acima de vinte pontos percentuais, em detrimentos dos nove por cento apresentados pelos EUA[2].
Dentre outras causas que justificam a acentuada desaceleração na vacinação experimentada pelos Estados Unidos, encontra-se a questão política e sentimentos e ideologias individuais[3]. Tal constatação pode ser aferida a partir de estudo realizado no país norte-americano apontando que cerca de 30% dos republicanos afirmaram que não iriam se vacinar, em detrimento de 4% de democratas.
Independentemente da ideologia ou escolha política envolvida na questão, o sentimento que une as pessoas nessa “caminhada” anti-vacina[4] perpassa, além, evidentemente, da desinformação, em questões de liberdade e autonomia individual das pessoas.
Em síntese, pode-se afirmar que o sentimento anti-vacina tem como suposto fundamento a liberdade e como causa a desinformação. Assim sendo, em que medida vacina e autonomia privada se relacionam e como escolher não vacinar encontra abrigo na liberdade individual reconhecida para todos?
A experiência que tem sido constatada nos Estados Unidos não é por acaso. Conhecido mundialmente como o país da defesa da liberdade, a história norte-americana carrega gloriosas páginas de luta e afirmação das liberdades individuais frente ao Estado. Contudo, não apenas de rosas vivem tais páginas. Tal sentimento de verdadeira repulsa a tudo aquilo que advenha de imposição ou recomendação estatal acaba levando a situações como a que se presencia no momento: a acentuada desaceleração na vacinação somada ao crescimento notório de casos e mortes em decorrência do novo coronavírus no solo norte-americano.
A questão acaba se tornando, dessa forma, compreender qual a medida ideal entre ideais de liberdade e autonomia privada, por um lado, e campanhas de caráter comunitário, por outro.
Tanto nos Estados Unidos, como no Brasil, no caso específico da vacinação, esta não pode se dar de maneira forçada, de modo que não encontra abrigo no ordenamento jurídico qualquer medida de imposição e constrangimento à aplicação de alguma das doses nas pessoas. Conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal no início deste ano[5], será válida apenas a vacinação compulsória, compreendida como aquela que estabeleça consequências e medidas indiretas que visem induzir as pessoas a vacinarem, respeitada, sempre, a proporcionalidade e razoabilidade de tais medidas.
Isso implica dizer que, em decorrência dos direitos fundamentais à autonomia individual (artigo 5º, caput e II, Constituição Federal) e de consciência (artigo 5º, VI e VIII, Constituição Federal), não será válida a vacinação forçada daquele que se recusar a se submeter a tal tratamento, em que pese todos os valores comunitários envolvidos nessa questão, em especial os direitos de terceiros à saúde (artigo 196, Constituição Federal) e à preservação sanitária.
Assim sendo, percebe-se que, ainda que em casos excepcionais, como o decorrente da pandemia do novo coronavírus, países como o Brasil e os Estados Unidos mantêm firme posição de defesa das garantias individuais dos cidadãos, preservando a autonomia privada daqueles que optam por não vacinar.
No caso em específico dos Estados Unidos, no entanto, esse suposto conflito entre escolhas individuais à não vacinação, de um lado, e preservação da saúde pública, de outro, ganha contornos de maior destaque, sobretudo pela (elogiável) cultura pró vacinação existente no Brasil, de modo que o sentimento anti-vacina não alcança fortes reverberações em solo brasileiro, ao contrário do que se observa no Estados Unidos.
A causa disso advém da estrita ligação, consolidada na cultura norte-americana, entre liberdade e limites à atuação do Poder Público. Em suma, a ideia que se tem de liberdade, muitas vezes, se confunde com a compreensão de autonomia frente ao Estado, no sentido de não fazer senão aquilo que restar determinado por lei.
Não obstante, reduzir a ideia de liberdade à mera abstenção ou limitação às exigências do Poder Público é vertente excessivamente reducionista de toda a problemática que envolve a compreensão da liberdade.
O movimento iluminista e as revoluções burguesas ocorridas ao longo dos séculos XV, XVI e XVII calcaram a liberdade como norte e fundamento de toda filosofia e pensamento construído naquele momento. Ali, a liberdade era compreendida como limitação do poder estatal soberano frente ao indivíduo, em decorrência de todos os acontecimentos vivenciados ao longo da Idade Média e, especialmente, do Estado Absolutista.
Todavia, as experiências posteriores à vitória liberal-burguesa demonstraram uma realidade em que não se efetivaram, de fato, a liberdade prometida outrora. Por mais que limitações tenham sido construídas frente ao Estado, a liberdade não estava alcançada em absoluto ou de maneira satisfatória.
Em razão disso, pensadores desde o século XIX vêm construindo novas percepções, análises e críticas ao conceito de liberdade. Dentre as correntes de maior destaque, podem ser citados Nietzsche, a partir da problematização da ideia de livre arbítrio do homem frente à vontade de querer inata em cada um; Marx, calcado na crítica do ideal de liberdade burguês em um contexto de desigualdade social e prevalência do capital; e Freud, demonstrando a ausência de liberdade da consciência frente ao subconsciente.
Independentemente da corrente que se filiar ou adotar, o fato é que compreender a liberdade como mero ato de limitação às imposições estatais é uma perspectiva deveras pueril. Todo desenvolvimento cultural dos últimos duzentos anos vem apontando que a liberdade não se resume à simples autonomia privada frente ao soberano, em que pese consistir em uma das facetas de grande destaque que possui.
Na experiência vivenciada no presente momento em solo norte-americano, se constata a tamanha simplificação que se confere à ideia de liberdade. Grupos que contêm 30% de seus representantes como contrários à vacinação não revelam ser defensores da liberdade; ao contrário, manifestam consistir no mais fiel dos prisioneiros que pode existir: aquele que é escravizado e faz questão de manifestar toda sua subserviência à ignorância, esta sim ferrenha e atroz inimiga da liberdade (e não meramente o Estado, como preferem acreditar aqueles que enxergam a liberdade até o surgimento de algum ato estatal).
Nesse sentido, não é a presença ou não do Poder Público que irá determinar ou afastar a garantia da liberdade. Estado (ou qualquer outra forma de organização comunitária) existe para o atendimento dos fins primeiro e último dos cidadãos. Não é o ente político em si que será contrário à liberdade, mas sim a forma com que os que estão no poder conferem à sua condução e estabelecimento.
No caso da vacinação em específico, o que se observa é a atuação precisa e necessária do Estado para o combate do vírus. A discussão de liberdade, por mais bela que seja, sequer pode ser construída onde não há vida. Na pandemia, os Estados de todo o mundo vêm atuando e cooperando entre si para que vacinas sejam distribuídas, pessoas sejam imunizadas e o vírus seja erradicado ou, ao menos, controlado.
Desse modo, liberdade e Estado, nesse caso, andam juntos quando a atuação deste volta-se para proteger e imunizar as pessoas do pernicioso vírus. Suscitar eventual conflito entre autonomia privada e interesses públicos e comunitários, no caso específico da vacinação, é deturpar por completo qualquer ideia razoável e minimamente consistente que se pode ter da liberdade. O ato de não vacinar, nesse caso, sob a pecha de afirmação da liberdade individual frente ao Poder Público, consiste, nada além, de efetivar toda a subserviência às algemas da ignorância.
Assim sendo, como deve se portar o Estado frente àqueles que se recusam a vacinar? O Direito possui instrumentos hábeis para cooperar na campanha de imunização?
Primeiramente, retoma-se o entendimento base firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADIs 6586 e 6587: não se admite a vacinação forçada no Brasil, sob pena de grave afronta à autonomia individual de cada cidadão. Contudo, é valida a vacinação compulsória, instrumentalizada através de mecanismos indiretos indutores à adoção da vacina.
Nesse sentido, é possível notar o primeiro instrumento jurídico admitido para o caso: o estabelecimento da vacinação como exigência condicionante para atuação ou comparecimento a determinados lugares.
Pode-se compreender como válidas, igualmente, as sanções premiais para vacinação. No caso, o Poder Público erige benefício(s), prêmio(s) àquele que tomar a vacina. É o caso de promover a imunização coletiva através da indução do comportamento das pessoas. Nos Estados Unidos têm sido relatados cada vez mais casos de incentivo premial à vacinação por parte do Estado e, até mesmo, de segmentos privados. No estado de Ohio, por exemplo, segundo artigo da The Economist, os prêmios por vacinação que encorajaram dezenas de milhares de pessoas economizaram mais de 60 milhões de dólares e cinco mil internações em UTI.
Por fim, pode ser citado como mecanismo igualmente válido para a campanha de imunização o estabelecimento de nudges: estímulos de comportamento adotados pelo Estado calcado na racionalidade na tomada de decisão humana[6]. Em síntese, consiste em estimular determinada escolha a partir da exposição de um cenário favorável ao comportamento desejado, sem envolver qualquer tipo de sanção, seja ela penalizante, seja premial. Os nudges possuem maior desenvolvimento no Direito pátrio no campo da Regulação, porém possui contornos apropriados para sua efetivação igualmente válida na seara da vacinação contra o novo coronavírus.
Em síntese, observa-se que a relação entre Estado, vacinação e liberdade é notória. Dessa vez, a atuação estatal tem se demonstrado como colaboradora da liberdade, na medida em que coordena e efetiva os planos de imunização. No entanto, a coparticipação das pessoas se torna essencial, pois, dentre todos os aparatos existentes e construídos pela Humanidade até o momento, a vacinação é o que apresenta, de longe, os melhores resultados contra o vírus. Assim, o Direito manifesta sua importância, delineando instrumentos válidos e eficazes para a ampla campanha de imunização a que se visa concretizar, especialmente através da imposição de condicionantes, sanções premiais e nudges.
[1] <https://www.band.uol.com.br/noticias/brasil-ultrapassa-eua-em-adultos-com-a-primeira-dose-16365963>
[2] <https://ourworldindata.org/covid-vaccinations?country=OWID_WRL>
[3] < https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/07/31/covid-por-que-a-vacinacao-nos-eua-esta-ficando-mais-lenta.ghtml>
[4] < https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/10/24/movimentos-anti-vacina-usam-argumentos-do-seculo-19>
[5] STF (ADIs 6586 e 6587): (I) A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, facultada a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade; e sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457462&ori=1>
[6] Costa, Natália Lacerda Macedo. “Nudge” como abordagem regulatória de prevenção à corrupção pública no Brasil. Disponível em:<https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/54/214/ril_v54_n214_p91.pdf>