Os aspectos legais da proposta de instituição da Taxa de Limpeza Pública no município de Goiânia
No último dia 15 de julho, o prefeito Rogério Cruz (Republicanos) enviou à Câmara dos Vereadores projeto para instituição de nova taxa municipal
O projeto de lei n. 258/2021, de autoria do prefeito do Município de Goiânia, Rogério Cruz (Republicanos), foi enviado para a Câmara dos Vereadores e será apreciado no segundo semestre do corrente ano de 2021. Tal projeto visa à instituição da Taxa de Limpeza Pública (TLP), a incidir sobre a prestação de serviço de coleta, remoção e tratamento de lixo e resíduos provenientes de imóveis urbanos.
A grande questão que envolve a criação de tal tributo acaba sendo, na prática, não a sua instituição em si, mas sim os fundamentos utilizados pelo Chefe do Executivo local para a elaboração do referido projeto de lei.
Isso porque, conforme consta da exposição de motivos presente no projeto de lei n. 258/2021, a criação da Taxa de Limpeza Pública teria como fundamento a exigência prevista no artigo 35, §2º, da lei federal n. 11.445/2007[1]. O dispositivo legal em questão preceitua que a não instituição da taxa de coleta de lixo acarretará a configuração de renúncia de receita, nos termos da Lei de Responsabilidade Fiscal, cominando a possibilidade de penalidades sobre o gestor que quedar-se inerte.
Dessa maneira, percebe-se que o motivo que levou o prefeito de Goiânia a propor a lei instituidora da TLP é a determinação prevista na lei federal acima exposta, e não uma finalidade de gestão meramente arrecadatória. Esse ponto acaba tornando-se crucial na celeuma que se instaurou nas últimas semanas acerca da validade desse novo tributo que poderá ser instituído.
Caso o Município optasse por instituir a Taxa de Limpeza Pública com fins exclusivamente fiscais, para geração de receitas aos cofres públicos, em tese, inexistiria qualquer inconstitucionalidade. Conforme já estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal, a instituição de taxa em razão da prestação de serviços públicos de coleta, remoção e tratamento ou destinação de lixo ou resíduos provenientes de imóveis não viola o texto constitucional (Súmula Vinculante n. 19).
Por detrás desse posicionamento do Supremo, havia a discussão acerca da validade de taxas instituídas em decorrência do serviço de limpeza urbana. Tal discussão fundava-se na análise da natureza desse serviço: segundo o artigo 145, II, da Constituição Federal, a taxa (espécie de tributo) somente poderá ser instituída, na hipótese de prestação de serviço público, quando este manifestar-se de maneira específica e divisível para cada contribuinte.
Isso implica dizer que taxa criada para prestação de serviço público usufruído de maneira difusa pela sociedade, sem que se possa estabelecer a quantidade e a maneira específica que cada cidadão se utilizou dele, será inválida perante à Constituição. No caso, tais serviços deverão ser financiados por impostos, já que incluídos na atuação geral do Poder Público.
Portanto, caso determinado Município opte por instituir taxa voltada para o custeio do serviço de limpeza pública, não haverá qualquer invalidade, desde que essa taxa refira-se à coleta, remoção ou tratamento de resíduos específicos gerados por cada contribuinte. Por isso, se o projeto de lei n. 258/2021, de autoria do prefeito goianiense, se fundasse, exclusivamente, na instituição da TLP para fins de incremento na arrecadação tributária, não haveria, a priori, qualquer vício do ponto de vista jurídico.
Ocorre que, conforme dito acima, o fundamento que consta do projeto de lei em questão para a instituição da TLP remonta à exigência prevista pelo artigo 35, §2º, da lei federal n. 11.445/2007, o qual determina a criação de taxa para coleta de resíduos dos imóveis urbanos, sob pena de possível violação da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Nesse sentido, o dispositivo presente na referida lei federal é manifestamente inconstitucional. De fato, o artigo 21, XX, da Constituição prevê que compete à União instituir diretrizes para o saneamento básico, sendo que tais diretrizes constam, justamente, da mencionada lei federal n. 11.445/2007.
No entanto, por diretrizes se compreende normas de caráter geral, voltadas à instituição e previsão de princípios e objetivos, com intuito de unificar e direcionar a atuação dos entes federados. Assim, não se enquadra na categoria de diretrizes normas de caráter específico, como é o caso do mencionado artigo 35, §2º, da lei federal n. 11.445/2007. Este, violando a autonomia dos Municípios, acaba por cominar a criação de tributo, sendo que a competência para tanto cabe, exclusivamente, ao ente federado que irá prestar o serviço público, o qual irá analisar as questões financeiras, orçamentárias e de viabilidade econômica para decidir se será criado o tributo ou não.
Assim sendo, não competindo à União legislar de maneira tão aprofundada sobre a temática do saneamento básico, já que sua competência se restringe às normas diretivas, padece claramente de inconstitucionalidade o artigo 35, §2º, da lei federal n. 11.445/2007. Consequentemente, inexiste no ordenamento jurídico brasileiro norma válida e hábil a exigir dos Municípios e Distrito Federal a criação de taxa para custeio do serviço de limpeza pública.
Caso não seja instituída a TLP exigida pela lei federal, não poderá haver a incidência de qualquer responsabilidade aos gestores públicos envolvidos, já que notoriamente inválida a previsão legal que assim o determina.
Ademais, a caracterização de renúncia de receita, prevista pelo artigo 35, §2º, da lei federal n. 11.445/2007 em razão da não instituição da taxa de limpeza urbana, é claramente inadequada e atécnica. Para que haja renúncia de receita, nos termos da Lei de Responsabilidade Fiscal, deve, primeiramente, existir um tributo instituído, o qual, em seguida, tem afastada sua cobrança (através de uma isenção, por exemplo), renunciando, dessa forma, à determinada carga tributária. A não criação de dado tributo está em contexto antecedente, inserido na competência tributária do ente político, que avaliará, por si próprio, se é devida ou não a criação.
Exatamente nesse sentido, a Ordem dos Advogados do Brasil do Estado de Goiás se posicionou na última semana (Processo nº 202105405), reconhecendo a possibilidade de criação da taxa, mas reafirmando a inconsistência jurídica da exigência prevista pela lei federal, bem como ressaltando a não caracterização de renúncia de receitas caso inexista a instituição da taxa.
As alternativas juridicamente válidas que se abrem, dessa maneira, consistem: (i) criação da TLP pelo Município de Goiânia, caso a instituição do tributo tenha como fundamento a arrecadação fiscal, devendo-se, para tanto, respeitar as limitações e os princípios do Direito Tributário (legalidade, anterioridade, capacidade contributiva); ou (ii) na hipótese de o Chefe do Poder Executivo municipal compreender desnecessária e contrária ao interesse público a instituição da TLP, quedar-se inerte nesse ponto, porém diligenciando, junto aos poderes competentes, a propositura de ações judiciais para que seja declarada a (manifesta) inconstitucionalidade do artigo 35, §2º, da lei federal n. 11.445/2007.
Por fim, se a escolha voltar-se para a instituição da TLP, dever-se-á instituí-la de modo condizente com a prestação do serviço público de coleta e tratamento do lixo gerado. Assim, na definição da base de cálculo do tributo, deverá a lei se ater à especificidade de geração de cada contribuinte, devendo ser eligido elemento que refira-se, de modo proporcional, à produção de resíduo por cada imóvel tributado.
[1] Art. 35. (...) § 2º A não proposição de instrumento de cobrança pelo titular do serviço nos termos deste artigo, no prazo de 12 (doze) meses de vigência desta Lei, configura renúncia de receita e exigirá a comprovação de atendimento, pelo titular do serviço, do disposto no art. 14 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, observadas as penalidades constantes da referida legislação no caso de eventual descumprimento.